Domenico Scarpa
(Centro Internazionale di Studi Primo Levi/Torino)

“Sou um homem normal de boa memória que esbarrou em um vórtice, que dele saiu por sorte ou virtude, e que desde então conserva uma certa curiosidade pelos vórtices, grandes e pequenos, metafóricos e materiais”. 

Primo Levi escreveu essas palavras para apresentar uma coletânea intitulada Racconti e saggi (Contos e ensaios). Era outubro de 1986, apenas seis meses antes da sua morte, mas o tom não é, de fato, um tom de testamento, mas sim de olhar para o futuro. Com essa breve frase, Primo Levi nos oferece uma definição de si mesmo, e graças à sua exatidão, incisividade e ironia, podemos tê-la como suficiente, porque é uma síntese da sua vida e da sua obra.

Se, porém, nós mesmos quiséssemos tentar dizer quem era Primo Levi, seria melhor adicionar um ponto de interrogação: “Quem era Primo Levi?”. Há dois anos, quando seis de suas obras foram distribuídas junto do jornal La Stampa, o cotidiano de Turim com o qual colaborou durante muito tempo, o Centro Internazionale di Studi Primo Levi, que opera na mesma cidade desde 2008, tentou responder a pergunta através de algumas linhas, impressas em cada uma das seis capas daqueles volumes: “Há cem anos do seu nascimento, em todo o mundo, Primo Levi é reconhecido não somente como uma entre as maiores testemunhas de Auschwitz, mas como um homem de pensamento capaz de desencadear, com qualquer um de seus leitores, um diálogo claro, apaixonado, arguto”.

Essa também é uma síntese, e talvez chega a dizer algumas coisas essenciais, mas é sobretudo uma frase que elenca talentos e campos do saber muito diversos e que, por isso, se abre em muitas direções: uma frase que demonstra a dificuldade de oferecer uma fórmula Primo Levi que seja sintética e, ao mesmo tempo, completa. Tal dificuldade é um fato positivo. Se hoje não é possível dizer, imediatamente, “Quem era Primo Levi”, isto significa que a ele não se pode aplicar nenhuma etiqueta, nenhuma definição unitária e satisfatória; significa que Levi foi mais coisas além de testemunha, não todas imediatamente decifráveis e, além disso, significa que fez mais coisas, uma quantidade tão grande de coisas, que nem mesmo alguns especialistas em sua obra conhecem todas.

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Renato Lessa
(Centro Primo Levi/PUC-Rio)

(Artigo publicado no suplemento Ilustríssima, do jornal Folha de São Paulo, sob o título “Primo Levi transformou em arte relato sobre o horror de Auschwitz”, em 27/7/2019).

“Sou químico. Aportei na categoria de escritor porque fui capturado como partigiano e terminei em um campo de concentração como judeu”.

A citação, retirada do curto e belo ensaio “O escritor não escritor”, reúne de forma admirável e concisa a multiplicidade de facetas presentes na trajetória pessoal e literária de Primo Levi. Obra prima em tempos de barbárie coagulada em 280 caracteres. Indica as dobras fundamentais do percurso de um sujeito cubista, em cujos vincos habitam personae tão diversas quanto as do químico, do escritor, do antifascista, do interno-sobrevivente de Auschwitz, do judeu. A diversidade de vertentes, contudo, tanto fascina quanto dificulta o trabalho dos leitores e estudiosos da obra.

O fascínio é autoexplicativo. Tanto a biografia quanto a qualidade e a originalidade literária da obra constituem fatores de atração irresistível. As dificuldades impõem-se ao movimento de imaginar uma composição que reúna todos os elementos. Na linguagem típica de Primo Levi, os aspectos da persona postos na epígrafe estão dispostos em série, tal como na sintaxe dos elementos químicos compostos. As ligaduras decorrem do acaso: cada condição teria levado à outra, sem nexo de necessidade, pela força errática e dissipada dos acontecimentos.

A obra de Primo Levi abriga forte sensibilidade a composições assimétricas e casuais, cujos efeitos não decorrem tanto da força isolada dos elementos originais reunidos, mas da produtividade combinada de suas ligaduras.  Cada uma das facetas citadas pode ser tomada como ponto de partida para a interpretação da obra. Não há caminho natural. A própria escolha dos biógrafos – relatar o que seria a totalidade existencial de Primo Levi – deve ser debitada como uma das possibilidades de aproximação.

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