1971: Primeira edição italiana, Turim, Editora Einaudi
1996: Primeira edição brasileira, publicado em livro intitulado 71 contos, em conjunto com outras obras de Primo Levi, com tradução de Maurício Santana Dias
Trecho retirado de Renato Lessa, “À guisa de posfácio: o trajeto leviano”, In: Renato Lessa & Rosana Kohl Bines (orgs.), Mundos de Primo Levi, Rio de Janeiro: Editora da PUC-Rio.
Cinco anos após o lançamento de Histórias Naturais, Levi publica seu quarto livro – Vício de Forma -, dando sequência ao veio da fantascienza, aberto pela obra anterior. Os vinte contos que o compõem foram escritos entre 1968 e 1970. A expressão contida no título, segundo Primo Levi, evocava a presença de um “defeito de forma que anula aspectos de nossa forma de vida e de nosso universo moral”, tal como inscrito no texto de apresentação do livro.
Em entrevista concedida a Luca Lamberti, Levi indica o quanto ambos os livros estão associados a uma nova postura no que diz respeito ao uso da linguagem:
“Julgava que havia exaurido um estoque de experiências únicas, trágicas e (para mim) paradoxalmente preciosas; parecia-me que me tinha queimado completamente como testemunha, como narrador e intérprete de uma determinada realidade, digamos um capítulo da história. Parecia-me que ainda tinha algumas coisas a dizer, e que só as poderia dizer em outra linguagem: uma linguagem que defino como irônica e que percebo como estridente, enviesada, rancorosa, deliberadamente antipoética, em suma, tão desumana quanto minha língua anterior havia sido humana”[1].
Trata-se ao mesmo tempo de uma reorientação temática e de uma redefinição formal. Após o lançamento sucessivo de dois livros de fantascienza, Levi definia sua estreia como escritor como consequência do envolvimento com “alguns acontecimentos importantes da História”, que lhe teriam “imposto” o dever de escrever. Uma vez “exaurida” a “função”, Levi desvia-se do “registro autobiográfico”: “pareceu-me então que um certo tipo de fantascienza pudesse satisfazer o desejo de me exprimir que ainda sentia, e fosse adequado a uma forma moderna de alegoria”[2]. Uma nova plataforma para a escrita parecia se configurar, ocupada por objetos imaginários e narrada por uma linguagem exonerada da pesada carga moral da obrigação do testemunho. Mas, de todo o modo, a imanência do Lager não se desfaz: “eu não publicaria [os contos de ficção fantástica] se não estivesse convencido (não inicialmente, para ser sincero) que entre o Lager e essas invenções existe uma ponte, uma continuidade”[3].
Os contos fantásticos de Levi podem ser tomados como parte de um experimento a respeito do que e como escrever depois de Auschwitz. A solução leviana, a seguir a própria natureza do autor, é compósita. Se a mudança temática, por um lado, dá azo à imaginação fantástica, por outro descortina um mundo distópico, assolado por dinâmicas tecnológicas e burocráticas que a seu modo fazem com que a pergunta leviana maior – é isto um homem? – seja reposta em chave ficcional. A abertura da linguagem para uma tópica humorística estabelece um regime textual que associa pessimismo, humor, ironia e absurdo. Para Levi, o homem do Lager sonhava com a possibilidade de ser infeliz à moda dos homens normais: uma imagem razoavelmente íntegra do humano, de algum modo, operava como premissa tácita da própria indagação a respeito da humanidade das vítimas. No universo da fantascienza o processo é distinto. Primo Levi cogitou em dar à segunda incursão lítero-fantástica o título de Desumanesimo – “Desumanismo” – , a sugerir que uma nova normalidade, estável e invencível, está posta.
[1] Entrevista concedida a Luca Lamberti, “Vizio di forma: ci salveranno i tecnici” (“Vício de forma: os técnicos salvarão a si mesmos”), publicada no jornal “L’Adige” em 11/05/1971. Cf. Primo Levi, Opere Complete III, Torino: Einaudi, 2018, pp. 35-36.
[2] Entrevista concedida a Alfredo Barberis, “Nasi storti” (“Narizes tortos”), publicada no jornal Corriere della Sera, 27 de abril de 1972. Cf. Primo Levi, op. cit., pp. 50-51
[3] Apud Mauricio Santanna Dias, “Primo Levi e o zoológico humano”, In: Primo Levi, 71 contos, op. cit., p. 11.
