1986: Primeira edição italiana, Torino, Editora Einaudi
XXXX: Primeira edição brasileira, Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra
Trecho retirado de Renato Lessa, “À guisa de posfácio: o trajeto leviano”, In: Renato Lessa & Rosana Kohl Bines (orgs.), Mundos de Primo Levi, Rio de Janeiro: Editora da PUC-Rio, 2021.
O terceiro – e derradeiro – grande livro que compõe o ciclo de Auschwitz foi publicado em 1986, um ano antes da morte de Primo Levi, sob o título de Os afogados e os sobreviventes: os delitos, os castigos, as penas, as impunidades. Trata-se de um retorno direto ao tema originário, no qual o intelectual maduro de 66 anos de idade retoma a memória do jovem de 28, com tinturas analíticas mais acentuadas. A escritura dos fragmentos não desaparece de todo, pois ela é o que permite a ostensão dos exemplos, mas subordina-se na obra de extrema maturidade a uma analítica que evoca o mandamento de Levi que faz da escrita um modo de ordenamento das coisas. Através de oito capítulos notáveis – na forma e na substância – Levi procede a uma rigorosa redução fenomenológica, em torno dos seguintes itens: “Memória da ofensa”; “A zona cinzenta”; “A vergonha”; “Comunicar”; “Violência inútil”; “O intelectual em Auschwitz”; “Estereótipos” e “Cartas de alemães”. Neste último, Levi comenta reações de leitores alemães à recém lançada edição naquele país de seu livro de estreia.
O suicídio de Primo Levi, em abril de 1987, fez com que retrospectivamente ao último livro fosse atribuído o selo do testamento, uma forma arbitrária de declarar concluída o conjunto da obra. Primo Levi sobreviveu a si mesmo, tanto por força de várias e importantes publicações póstumas, como pelo fato de que sua voz permanece ativa, como contraponto aos processos de degradação civilizatória que se aceleraram e se aprofundaram depois de sua morte. Mas, de todo modo, parte expressiva do legado leviano está contida em Os afogados e os sobreviventes.
A começar pelas motivações para a composição do livro. É inegável que estejam ainda ativas no meio de nós: a dissipação da memória de Auschwitz e o advento e a fixação de uma cultura negacionista e revisionista. O livro, concebido cerca de dez anos antes de sua publicação, resultou de ambos os espectros. A memória de Auschwitz retorna, sob tratamento analítico sóbrio e sem alguns dos recursos retóricos empregados no livro de estreia, ainda que não eliminados de todo. Para Levi, assim como a transmissão, a retórica – o modo de argumentar e persuadir – fazia parte do processo da verdade. Os fatos deixados à sua própria sorte evanescem na memória dos que os testemunharam, mas ganham em verdade, expressividade e extensão na medida em que acolhidos pela linguagem: “Talvez seja indispensável uma certa dose de retórica para que dure a memória”.
A linguagem, no entanto, ainda que central no processo de transmissão, está sujeita ao limite intransponível do alcance do próprio testemunho. Tal consciência compõe uma dimensão estrutural do relato analítico de Levi: não lhe foi dado ver tudo.
“Numa distância de anos, hoje se pode bem afirmar que a história do Lager foi escrita quase exclusivamente por aqueles que, como eu próprio, não tatearam seu fundo. Quem o fez não voltou, ou então sua capacidade de observação ficou paralisada pelo sofrimento e pela incompreensão”.
Trata-se, a um só tempo, de falar do Campo e a partir dele. A transmissão leviana, ao fixar a memória, dirige-se ao futuro, em função da intuição de que “se aconteceu (Auschwitz), poderá novamente acontecer”. Se em É isto um homem? o relato foi propulsionado por um interesse cognitivo que bem pode ser definido como filosófico-político-moral-antropológico, o de observar o sujeito humano in extremis – “fornecer documentos para um sereno estudo de certos aspectos da alma humana” -, em Os afogados e os sobreviventes manifesta-se também uma vontade de compreensão.
“Este livro pretende contribuir para o esclarecimento de alguns aspectos do fenômeno do Lager, que ainda são obscuros. Propõe-se também um fim mais ambiciosos; pretende responder à pergunta mais urgente, a pergunta que angustia todos aqueles que tiveram a oportunidade de ler nossas narrativas: em que medida o mundo concentracionário morreu e não retornará mais, como a escravidão e o código dos duelos? Em que medida retornou ou está retornando? Que pode fazer cada um de nós para que, neste mundo pleno de ameaças, pelo menos esta ameaça seja anulada?”.
Apresentação do livro Os afogados e os sobreviventes, para a coleção de obras de Primo Levi publicada semanalmente pelo jornal La Repubblica, a partir de 20/01/2024
Domenico Scarpa
(Centro Internazionale di Studi Primo Levi/Torino)
Em 1986, ano de publicação de Os afogados e os sobreviventes, já haviam se passado mais de quarenta anos da deportação de Levi como judeu, e quase trinta da publicação da edição alemã de É isto um homem?, lançada em 1961. Três anos ainda viriam a decorrer antes da queda do Muro de Berlim (1989) e, com ela, a da divisão da Europa em dois blocos ideológicos opostos. Um duplo evento, suficiente para fixar o genocídio judeu como tema de reflexão em grande parte do mundo. Quando isso veio a acontecer, infelizmente Primo Levi já estava ausente havia dois anos. O fato-Auschwitz, contudo, permanece. Sobre o que ali sucedeu permanece também a reflexão de Primo Levi, desenvolvida ao longo de três décadas e precipitada, no sentido químico do termo, nos oito ensaios que compõem Os afogados e os sobreviventes. Alguns dos títulos desses ensaios tornaram-se utensílios de pensamento em nível planetário: a “zona cinzenta” que se estende entre as vítimas e os algozes e que turva uma investigação e um julgamento mais do que nunca necessários; a paradoxal “vergonha” que oprime os poucos sobreviventes do campo de concentração; a “violência inútil” exercida com o único propósito de introduzir dor adicional no mundo; os “estereótipos” de todas as formas que tendem a se impor sobre raciocínios complexos e matizados. Essa história de afogados e salvos, essa derradeira história que Primo Levi nos contou, é uma história do mundo atual. Não fala apenas do passado: dialoga conosco e fala de nós, do nosso aqui e agora, sem nos propor soluções, muito menos soluções fáceis. “Os afogados e os sobreviventes” é um livro obstinado, um livro ansioso pelo futuro, um livro que nos oferece um estilo de pensamento e uma perspectiva sensata para nosso olhar, um livro que põe à nossa disposição (como afirmou a historiadora Anna Bravo, uma de suas leitoras mais perspicazes) uma “sinalização de problemas”.
(Tradução: Renato Lessa).
